Jorge M. Martins1
Em Setembro de 2016, a Póvoa de Varzim convidou-me a escrever sobre Eugénio Lisboa, para a revista Correntes d’Escritas 2017. Apressei-me a responder afirmativamente, invocando três motivos: «porque considero exemplar o dinamismo cultural da Câmara Municipal da Póvoa; porque considero Eugénio Lisboa um dos maiores ensaístas portugueses vivos; porque Eugénio Lisboa é um dos meus melhores amigos». Eis o meu testemunho, em Dezembro de 2016.
VOZ do MAR
Eugénio Lisboa encontrava-se de novo na «metrópole», nesse começo de 1968. Antes de regressar a Moçambique, preparava-se para visitar José Régio, já aposentado e a viver na sua casa de Vila do Conde. O escritor fornecera-lhe as coordenadas, em carta de 19 de Fevereiro: «De manhã, depois das dez horas, ou estou em casa (...) ou no Diana-Bar da Póvoa, onde nos encontrámos da última vez. No Diana-Bar, de manhã, estou em baixo, no primeiro piso. À tarde, geralmente no segundo piso, que a gente chama a Galeria. Dessa última vez, foi aí que nos encontrámos».
O anterior encontro tivera lugar no Verão de 1963 e incluíra uma visita conjunta à Casa de Camilo, em S. Miguel de Seide. Eugénio Lisboa há-de recordar tais momentos, em carta de 4 de Agosto de 1964: «Tenho imensas saudades dos dois escassos dias que passei em Vila do Conde/Póvoa, o ano passado». E há-de celebrar, anos mais tarde, o apaixonado camilianismo dos dois visitantes, num luminoso ensaio a que deu o saboroso e evocativo título de «‘Coisas Nossas’. José Régio e Camilo: a love for all seasons», ensaio hoje disponível no seu Ler Régio.
No Diana-Bar, edifício modernista do final dos anos trinta, plantado no areal da Póvoa de Varzim e virado para a antiga Praia de Banhos, funciona desde 2002 um dos polos daquele modelar equipamento cultural que é a Biblioteca Municipal Rocha Peixoto onde, em recente comemoração dos seus 25 anos, tive oportunidade de tratar o tema «Livros: difícil é lê-los».
Todavia, durante seis décadas, o velho e belo Diana-Bar foi um lugar selecto de encontros estivais e de tertúlias intelectuais, onde José Régio escreveu muitas das suas páginas, como ainda hoje é recordado no próprio local.
Não sei se, no antigo Diana-Bar, havia música ao vivo, mas sei que Régio sempre viveu embalado pelos fraseados melódicos de um muito pessoal repertório. «Para Régio, a poesia é música, canção, são ‘rimas e ritmos’ e o poeta é o trovador que mede pelos dedos subtis segredos», escreveu Ruy Belo a propósito do primeiro póstumo, Música Ligeira. Anos antes, a «minha Amália Rodrigues» (como lhe chamava Régio desde 1955) tinha gravado com Alain Oulman o Fado Português, primeira de múltiplas versões musicais de poemas regianos, pela voz de vários intérpretes. Será que o poeta ambicionava tanto ser cantado quanto o dramaturgo ver representado o seu teatro?
A sua obra poética, para citar apenas esta, é fértil em sugestões musicais, seja nos títulos dos livros – Fado (1941), Cântico Suspenso (1968), Música Ligeira (1970) –, seja nos títulos de poemas, como os seguintes: «Cântico Negro» (Poemas de Deus e do Diabo); «Cântico» (Biografia); «Canção de Guerra», «Realejo» (As Encruzilhadas de Deus); «Fado do Silêncio», «Fado de Amor», «Balada de Coimbra», «Fado dos Pobres», «Toada de Portalegre», «Fado Alentejano», «Fado-Canção» (Fado); «Melodia», «Canção», «Ode», «Pequena Sinfonia» e «Canção da Tarde» cujo refrão «Canta, canção!» é oito vezes repetido (Mas Deus é Grande); «Canção Cruel», «Cancioneiro de João Bensaúde» (Filho do Homem); «Canção dos Dias Contados», «Cantar de Amigo» (Música Ligeira); «Momento Musical» (Colheita da Tarde).
No próprio corpo de não poucos poemas, é também frequente o recurso às formas de inspiração melódica. Mais dois exemplos. O longo poema
«Levitação» (Mas Deus é Grande) termina assim: «As músicas que então me embalam triplo ser, / Como as tentar captar, como as dizer? / Se alguém as já ouviu, ou é capaz de ouvi-las, / Compreenderá que é vão o intento de exprimi-las». E como derradeiro eco desse «vão» alarme, o livro póstumo Colheita da Tarde acolhe o poema «Enfim», onde pode ler-se: «Há tanto lhes canto / Para ser ouvido! / E ao fim desse tanto, / Sou desconhecido».
Em 5 de Fevereiro de 1969 (a dez meses do fim), Régio escreve mais uma carta a Eugénio Lisboa, na qual informa ter em mãos o sexto volume «da interminável Casa» e, sobretudo, a Confissão dum Homem Religioso que lhe está a sair «com uma facilidade espantosa». Tal missiva começa assim: «Encontro-me no bar da Póvoa em frente ao mar, que é agora o meu gabinete matinal de trabalho, está um dia de frio mas com sol».
Régio gostava de escrever à beira-mar. Talvez para honrar o Só de António Nobre – «Georges! Anda ver meu país de marinheiros, / O meu país das naus, de esquadras e de frotas! / Oh, as lanchas dos poveiros / A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!» –, seu livro-paixão da adolescência, segundo revelou na Confissão; mas certamente para se reencontrar, como confidenciou na décima segunda oitava do longo poema «Sarça Ardente» de As Encruzilhadas de Deus: «Na voz do mar só me ouço a mim, que choro».
MOZART e RÉGIO
Eugénio Lisboa não terá escrito nenhuma das suas páginas no Diana-Bar. Porém, mesmo dispensando a poveira «voz do mar», a sua prosa – simultaneamente ática e fulgurante, nítida e encantatória, rigorosa e desenfadada – lembra sempre a fluência pianística de uma envolvente música ao vivo.
Por exemplo, na sua incansável atenção à obra de José Régio ao longo de seis décadas – desde a primeira monografia escrita em 1955 (publicada no Porto dois anos depois) até ao recente texto sobre os 80 anos de As Encruzilhadas de Deus (JL, 12-10-2016) –, é tão constante o recurso ao expressionismo de recorte musical que o crítico Eugénio Lisboa quase se irmana, ainda mais, do criador de Vila do Conde.
A monografia dos anos 50 já propõe, para um exame crítico da obra regiana, que se proceda ao «estudo apurado e minucioso da sua técnica, do seu ritmo», com vista à «interpretação das suas dissonâncias»; que se preste «atenção ao uso metálico de certas formas de particípios passados»; que se verifique se os «aparentes deslizes musicais não serão intencionais, se não estarão em obediência íntima ao conteúdo por tal forma musicado» (itálicos meus). Ainda nessa década, em carta de 29 de Julho de 1957, Lisboa diz a Régio: «O que há de música de câmara (talvez o ponto mais depurado e transcendente atingido pela sua Poesia) em tudo quanto tem escrito – poesia ou prosa ou drama – tem passado um pouco na sombra, ofuscado talvez pelo que no resto há de mais brilhante ou espectacular».
Por seu lado, no recente artigo de 2016, as sugestões musicais de Eugénio Lisboa parecem atingir o clímax. As Encruzilhadas são lidas como «obra de toada dramática e eloquente, apaixonada e vibrante, em registo de música sinfónica de orquestração ruidosa» e, ainda, como «música de grande formato wagneriano», em contraste com a «contida e austera música de câmara» de Mas Deus é Grande. E à poesia dita «depurada», praticada pelos actuais cultores dessa escola de pensamento, chama «música de raros decibéis». Ora saudando «o brilho orquestral de alguma poesia de Régio», ora admitindo no mesmo palco «tanto os pletóricos como os mais esganiçados» pois nele «há lugar para todos», eis um inspirado Eugénio Lisboa a revelar-se tanto engenheiro-de-letras como melómano.
Sabemos agora, pelo volume II (1947-1955) das memórias, que a música depressa se tornou «indispensável» na formação integral de quem já sabia articular, com idêntico entusiasmo, a engenharia e a literatura, o cinema e o teatro. Eugénio Lisboa conta que «ouvia música sinfónica e ópera» enquanto estudava matemática ou química; que seguia «os minuciosos folhetins de História da Música, da autoria de Luís de Freitas Branco»; que frequentava «concertos ao vivo» e que, um dia, teve «uma experiência desagradável»: no São Carlos, em vez da Isolda «elegante, espiritual e bela» de Wagner, saiu-lhe «um monstro antediluviano» que o fez abandonar o teatro e regressar a casa para «ouvir o resto da ópera pela telefonia».
Ainda nas memórias, agora no volume III (1955-1976), o do regresso a Moçambique, são recordados amigos melómanos, como o poeta Rui Knopfli (tão apaixonado por jazz que terá sido ele a pegar o «vício» a Eugénio Lisboa), Fernando Bettencourt (o da «história pícara» relativa a Sibelius e Bruckner), o poeta Alberto Lacerda e o médico Henrique Macedo, entre outros. No mesmo volume, surge este curioso registo, a propósito de algumas «perdas impressivas» de 1971: «Em 6 de Julho, partia, para verdes pastagens, esse monstro da música moderna americana, Louis Armstrong, pondo fim à primeira grande era do jazz (a música que Mozart teria inventado se tivesse vivido no século XX)».
Mozart, portanto. E com ele chegamos às memórias de Londres, no volume IV (1976-1995). Edith Philips está a entrevistar Eugénio Lisboa, para a rádio, e pergunta-lhe: «Quais são, para si, os três maiores compositores?». Eis a imediata resposta: «Mozart, Mozart, Mozart». E segue-se logo a explicação: «A verdade é que o grande e genial rufia me serve para todas as estações e para qualquer estado de espírito, desde o mais depressivo ao mais eufórico». Páginas adiante, lê-se esta nota de 20.05.89: «Hoje, vai ser uma noite de trabalho, até às tantas. Talvez um pouco de música ajude». Para tal melómano, Mozart, com certeza!
O recurso a uma tríplice e divertida repetição, como modo corajoso de sublinhar uma convicção, vai ressurgir num texto de 1996, disponível no Portugaliae Monumenta Frivola. Tal texto não fala de música, mas de literatura e intitula-se, precisamente, «Régio, Régio, Régio». Na sua muito especial «lista de afectos duradouros», Mozart, o «genial rufia», faz companhia ao escritor José Régio, cuja obra «aprisionou» Eugénio Lisboa para sempre, «naquela ‘província’ fechada e rica de sugestões, nuances, subtilezas e brutalidades». Certamente porque um «grande escritor é o que dá voz ao que está no mais secreto de nós e não sabemos exprimir».
MAGNUM OPUS
Eugénio Lisboa sempre gostou de utilizar, nos seus escritos, expressões importadas da literatura clássica. Tal hábito tem raízes no liceu de Lourenço Marques (onde foi tão bom aluno em Letras como em Ciências), nas leituras juvenis (onde não faltaram Ésquilo, Sófocles e até o Quo Vadis) e na decisiva descoberta de Montherlant («grande romano do nosso tempo» e seu mestre de independência). Tudo isso vem sedutoramente recordado nos cinco volumes de memórias, aos quais pôs o título comum, obviamente em latim, de Acta Est Fabula.
Como é sabido, tal expressão rematava as representações teatrais e pedia aplausos: plaudite. Mas, dispensando este memorialista as palmas, os seus leitores aproveitam para lhe pedir que não tenha pressa em abandonar o grande teatro do mundo e que, apesar do título adoptado, prossiga. Escrever é lutar contra a morte, reconfigurando o ofício de Orfeu. Aliás, em momento bem doloroso, ele próprio lembrou que «escrever é preciso» (JL, 22-6-2016), já que «a alegria de escrever é o antídoto eficaz contra a nossa impossibilidade (e angústia) de viver».
Ora, tem sido também com uma expressão latina – magnum opus – que Eugénio Lisboa vem qualificando o seu segundo grande estudo de 1976: José Régio, a Obra e o Homem. Fê-lo, recentemente, no quarto tomo das memórias e também no prólogo ao volume da sua correspondência com Régio, onde escreveu: «Era este o livro que eu gostaria de ter oferecido, em vida sua, ao escritor que tanto deslumbrara e iluminara os meus anos adolescentes. E que não parei de ler e estudar, pela vida fora».
Entre 1955 e 2016, Eugénio Lisboa publicou muitas outras obras, sobre diferentes temas e autores. Mas, por entre a sua vasta e nunca monótona obra de interpretação regiana, tenho em particular apreço dois pequenos mas admiráveis volumes: José Régio, uma Literatura Viva (escrito em Estocolmo, editado em 1978 e considerado pelos distraídos como «resumo» da monografia de 1976) e ainda O Essencial sobre José Régio (INCM, 2001). Lêem-se de um fôlego, mas são ponto de chegada de duro trabalho de investigação, escrita e ensino.
Apesar do muito que tem trazido a público, o autor insiste em chamar magnum opus à monografia regiana que lhe editei, precisamente, há 40 anos. De facto, o livro foi publicado em Lisboa, em Novembro de 1976, na defunta Arcádia, onde eu era director editorial. E como os livros fazem amigos, nós e as nossas famílias ficámos amigos para sempre. Mais tarde, o autor actualizou-o e acrescentou-lhe um prefácio, no qual contou a pré- história da primeira edição, em termos tão generosos para comigo que me deixaram confundido.
Porém, não sei se concordo inteiramente com o autor, quando chama magnum opus regiano àquele livro de 1976. Para mim, é o conjunto da sua obra, fecunda e vária, que o ergue à nossa admiração. Aliás, mesmo quando regressa ao escritor de Vila do Conde e Portalegre, o infatigável Eugénio Lisboa nunca se repete, como se pode verificar, por exemplo, nas suas múltiplas intervenções do centenário e nos seus textos de apoio aos volumes do Círculo de Leitores e da INCM.
Eugénio Lisboa qualifica a monografia de 1976, no tal prefácio da segunda edição, como «uma inequívoca obra de atenção», aquela prolongada e obstinada atenção que representa «a maior homenagem que um estudioso pode prestar ao autor estudado». Empenhado admirador da obra de Régio, Eugénio Lisboa é reconhecido como o seu mais lúcido analista. Mas eu talvez preferisse dizer: como o seu mais inspirado intérprete musical.
Magnum opus regiano, o livro de 1976? Por muito que tal cognome lisonjeasse o seu editor de então, concordar com o autor seria como tentar eleger a melhor das várias, belíssimas, mas sempre diferentes interpretações das sinfonias de Tchaikovsky, sob a batuta criativa e empolgante do maestro Valery Gergiev, à frente da Mariinsky Orchestra.
Lisboa, 31-12-2016, JMM
1 - Jorge M. Martins, natural de Lisboa, doutorado em Sociologia da Comunicação e da Cultura pelo ISCTE, membro da Academia Portuguesa da História, foi editor, professor universitário, consultor de empresas, membro da Comissão Nacional da UNESCO e presidente do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Algumas obras: Marketing do Livro (1999), Patrimónios Mundiais com Selo Português (2003), Profissões do Livro (2005) e vários volumes da série anual Portugal em Selos.